“Literatas Brasileiras de fins do século XIX” por Laila Correa e Silva3
(ANO 03 — NUM 01)
Dia 08 de março, “Dia Internacional da Mulher”! Dia de parabenizar todas as mulheres por suas conquistas e, também, relembrar de todas as lutas travadas por elas, em todos os tempos e em todos os séculos. Na chave da memória, à qual geralmente recorremos para visitar a história de fatos e personagens que nos precederam na articulação de movimentos sociais, culturais e políticos, convido leitores e leitoras para uma pequena viagem no tempo, nos arquivos dessa memória que guarda a trajetória de algumas das brasileiras que começaram a questionar o lugar ocupado pela mulher na sociedade de fins do século XIX.
Por meio da escrita, principalmente nos jornais cariocas dirigidos por mulheres, combativas e atuantes no mundo das letras, Josefina Álvares de Azevedo (1851- ?), Inês Sabino (1853–1911) e Maria Benedita Câmara Bormann [Délia] (1853–1895), pretenderam sensibilizar e promover o debate público sobre a educação destinada à mulher. Essas escritoras atuavam contra todas as amarras sociais que as impediam de participar de modo pleno e político na vida pública. É interessante notar que o embate e a contestação não se dão somente por meio de organizações ou movimentos sociais propriamente ditos, mas pode se desenvolver por meio da escrita de um jornal, ou da literatura, ou das artes e da cultura de modo geral.
O que ocorreu no caso das três mulheres que pretendo apresentar brevemente aqui, consiste na construção de um discurso jornalístico e literário evidenciando as capacidades intelectuais das mulheres, que segundo elas estariam inteiramente aptas para exercer qualquer tipo de atividade intelectual e política, em caráter de igualdade com o homem. Atualmente, apesar de ainda estarmos muito distantes de atingirmos a igualdade entre homens e mulheres, pode surpreender o fato de ter sido necessário apontar que ambos são dotados das mesmas capacidades intelectuais, e que poderiam exercer as mesmas atividades e serem contemplados pelos mesmos direitos e deveres propiciados pela cidadania. Todavia, à época da produção escrita dessas três literatas, no contexto de transição entre o regime monárquico e a proclamação da República no Brasil, as mulheres tinham direitos muito restritos e, visando uma maior participação nos rumos políticos e sociais do Brasil, ansiavam pelo direito de votar e serem votadas, direito que apenas foi conquistado em 24 de fevereiro de 1932, após muitas mobilizações por parte das mulheres.
Josefina Álvares de Azevedo foi uma defensora pioneira do voto feminino. No jornal fundado e dirigido por ela mesma, intitulado A Família: jornal literário dedicado à mãe de família (1888–1898), a professora e jornalista escreveu vários artigos em defesa de uma educação feminina de qualidadee, sobretudo, conscientizando e mobilizando suas leitoras para a luta em prol da conquista de direitos políticos à mulher. Destaco aqui a peça teatral O voto feminino, escrita e encenada em 1890, no Rio de Janeiro. A peça se refere ao momento decisivo de discussões, no âmbito da Assembleia Constituinte republicana, em que os debates parlamentares se voltavam para, entre outras questões, o direito ao voto feminino. Josefina Azevedo construiu personagens femininas fortes, inteligentes e ávidas em tomar a dianteira no processo político de início da República no Brasil. As mulheres da trama O voto feminino pretendiam se engajar numa verdadeira “revolução das saias”, na qual elas assumiriam cargos políticos de importância e seguiriam carreiras profissionais consolidadas, assim como os homens. Estes, por sua vez, com apenas uma exceção, temiam que as mulheres tomassem seus empregos e os papeis se invertessem, ou seja, temiam ter de assumir as tarefas domésticas e todas as ditas prerrogativas (restritas) de ser mulher em fins do século XIX.
O voto feminino foi encenado em 26 de maio de 1890, no Recreio Dramático, um dos teatros mais populares do Rio de Janeiro e depois teve versões impressas em folhetins no jornal A Família. O que mais impacta, num primeiro momento, é a pouca informação que temos sobre a vida e a trajetória de Josefina Azevedo, apesar da importância social e política de sua escrita militante… O que conduz a pensarmos acerca dos silêncios impostos à voz feminina em vários momentos da nossa história, assunto que renderia outras longas conversas e que não cabe só ao exemplo da vida de Josefina Azevedo, mas à trajetória de Inês Sabino e Maria Benedita Bormann [Délia] e tantas outras mulheres que ousaram falar, escrever e atuar fora do círculo privado e restrito destinado à mulher.
Além dos artigos em jornal e da peça teatral, Josefina Azevedo escreveu a Galeria Ilustre (mulheres célebres) publicada em 1897. O seu objetivo era justamente abordar a biografia de grandes mulheres que atuaram de forma decisiva na história e que, infelizmente, não encontraram o devido eco na memória nacional.
Inês Sabino também foi uma jornalista de destaque em fins do século XIX. Ela colaborou em vários jornais femininos e em outros destinados ao grande público. Escreveu contos, romances, crônicas e também um livro de biografias: Mulheres Ilustres do Brasil (1899). Sabino era uma escritora militante na imprensa feminina e na causa pela obtenção de direitos à mulher e, principalmente, pela consagração da produção intelectual das mulheres brasileiras, preocupando-se em perenizar nomes femininos que se destacaram por atos cívicos ou por suas obras literárias. Assim como Josefina Azevedo, Inês Sabino demonstrou plena consciência das mudanças sociais engendradas pela proclamação da República e alertava à mulher sobre o seu decisivo papel social nesse momento de mudanças. Seus escritos falavam sobre educação feminina, casamento e pressões sociais diversas impostas à mulher pela sociedade patriarcal.
Maria Benedita Câmara Bormann, com o pseudônimo Délia, foi uma escritora ativa entre 1880 e 1895. Ela tinha laços de amizade com Inês Sabino; ambas participaram dos mesmos periódicos, tanto aqueles dirigidos por mulheres, como os de público geral. Délia escreveu durante dez anos para os principais jornais do Rio de Janeiro, tais como a Gazeta de Notícias e O País. A literata publicou contos e romances nos quais a mulher era a personagem principal. Seu ponto chave de crítica era o casamento e as imposições patriarcais que coagiam a mulher. O tema da violência do homem contra a mulher, o casamento como fonte de muitas frustrações femininas e a política como assunto feminino são temáticas recorrentes na obra de Délia. O romance mais polêmico da autora, segundo a crítica da época, foi Lésbia, publicado em 1890. É interessante destacarmos esse romance, pois ele aborda o processo de emancipação e formação de uma escritora em fins do século XIX. Lésbia narra a vida da jovem Arabela. Filha única de uma família de posses, dotada de extraordinária inteligência e beleza, vive feliz até os 16 anos. Por volta dos 19 casa-se e é infeliz no casamento, porque tem um marido hostil, grosseiro e ciumento que zombava do empenho de Arabela nos estudos. A jovem, com o consentimento do pai, expulsa o marido de casa e a partir de então começa sua jornada de bailes e festas, até sofrer uma desilusão amorosa que a impulsiona definitivamente para o mundo as letras. A partir desse enredo, Délia encontrou um campo perfeito para o debate sobre as limitações criativas impostas à mulher que pretendia se dedicar à escrita. Apesar de tudo, Lésbia, pseudônimo adotado por Arabela, consegue publicar folhetins nos jornais cariocas e alcança notoriedade com sua escrita, que assim como a obra de Délia, toca em temas polêmicos relacionados à vivência feminina.
Acredito que essas três escritoras, mesmo que tenham sido ilustres escritoras de fins do século XIX carioca, são “ilustres desconhecidas” de grande maioria de nós. E isso- como já mencionei antes- é um indicativo do apagamento de parte da nossa história, da trajetória de nossos embates diários por igualdade entre homens e mulheres. Certamente, muito da abertura que eu mesma encontro aqui para escrever e ser lida, assim como outras tantas mulheres, escritoras, estudantes, profissionais ou não, beneficiam-se dos embates travados por elas, lá no século XIX. Isso porque o nosso lugar de fala- enquanto mulher- teve que ser conquistado a “duras penas”… Das penas utilizadas na escrita de literatas nos jornais, nos folhetins do século XIX, nos panfletos, nos comícios, nas organizações e movimentos sociais, nos séculos XX e XXI. É por isso que 08 de março é dia de contar histórias, mas é também um dia de reiterar a necessidade de continuarmos lutando, na rua, na escrita, na fala, seja onde for. Sabemos que o caminho a ser percorrido ainda é muito longo…
3 Graduada em Filosofia e História pela Universidade Estadual de Campinas, mestra em Filosofia e doutoranda em História Social pela mesma universidade. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Império, Literatura Brasileira e Machado de Assis.
Imagem: a escritora Josefina Alvares de Azevedo, gravura publicada no periódico A Família. Sem autoria, sem data.